Nessa noite de sexta-feira, 21, na platéia de uma apresentação da banda musical japonesa Hinoki-Ya, no Espaço Funarte, em Brasília, em Comemoração aos 100 Anos da Imigração Japonesa no Brasil, eu fiz uma reflexão. Eu me lembrei que sou metade japonesa.
É estranho falar de uma cultura quando não se sabe ao certo o quanto ela faz parte de você. Metade de mim é brasileira e a outra não. Mas não sei exatamente definir quais partes estão em quê. Costumo dizer às pessoas que esperam certas reações japonesas de mim, que aquilo ficou justamente nos 50% da raça que me falta. Mas me surpreendo quando observo um oriental e percebo que realmente que tenho algumas reações nipônicas, inevitavelmente, genéticas.
A voz levemente nasalada e estridente, o tom seco, os gestos contidos ou o andar meio quadrado e, às vezes, desengonçado. O cabelo liso de fios grossos que ficam espetados quando curtos ou escorridos quando repicados. A marcante falta de ritmo musical, a neurose em cumprir regras e avisos, a necessidade de ordem mesmo na assimetria. Devo ser uma das poucas pessoas no mundo que lêem mural e manual de instrução.
Os japoneses são tão peculiares que me faz acreditar que J. R. Tolkien se inspirou neles para criar os Hobbits em sua ficção literária. O hábito de trocar presentes e de guardar coisas velhas, as superstições mais absurdas, a obstinação em certas ações etc.
Mas meu cabelo mestiço tem fios que não se misturam, finos e grossos. Meu corpo tem curvas que as japonesas não têm, mas não são comparáveis às das brasileiras. Ser mestiço é complicado, é como ser um cão vira-lata, tem uns que prestam e outros que não, mas sempre tem alguém que gosta. Aqui, no Brasil, eu sou japonesa. Lá, no Japão, eu sou brasileira. Sorte minha esse país tropical ser racialmente diversificado.
Meu pai veio para o Brasil com oito anos, em 1961, num navio cujo não sei o nome. Caçula de três filhos, costuma dizer “Eu não vim, me trouxeram”. Meus avôs, tios e o otousan (pai) desembarcaram, como todos os demais, em Santos (SP) e foram trabalhar nas lavouras de café do interior de São Paulo. “Os negros tinham força para o trabalho braçal e comiam comida que os sustentavam no trabalho: milho, arroz e feijão. Nós, japoneses, tínhamos habilidade para mexer com coisas pequenas, delicadas, e comíamos arroz, peixe e chá. Não tínhamos força para a enxada, então começamos a plantar hortaliças”, me contou.
Sei lá como meu avô conseguiu comprar uns hectares de terra no norte do Paraná, mas a família foi trabalhar no campo plantando hortaliças para abastecer supermercados e feiras da região. E foi assim que meu pai conheceu minha mãe, brasileiríssima. E assim eu nasci. E a casa encheu de gente para ver que bicho tinha dado porque japoneses não costumavam se misturar com outras raças.
Quando assisto uma manifestação cultural dos meus ancestrais nihondins (japoneses), é como se estivesse resgatando algo enterrado não tão fundo, mas nem tão raso. E fico me perguntando, “isso faz mesmo parte de mim?”. Deparar-me inesperadamente com um japonês é sempre um susto, como se eu desse de cara com um espelho (e não é pela semelhança). A reação deve ser a mesma do outro lado porque japoneses mesmo quando não se conhecem, cumprimentam-se.
Fui educada até os quatro anos em um sistema japonês com minha obatchan (avó) e ela nem falava português. Mudar para o Estado da Bahia com meus pais na década de 80, quando os Campos Gerais do oeste baiano estavam sendo colonizados pelos sulistas, foi um enorme choque cultural. Além de sermos (eu e minhas irmãs) as únicas japonesinhas da escola, da rua e do bairro, havia palavras que só conhecíamos no idioma natal. Para agravar, puxávamos o R como os sulistas (imagine alguém falando japonês com sotaque do sul) e tínhamos hábitos diferentes dos baianos.
De repente, os outros não eram mais gaijins (não-japoneses), nós é que não éramos (intereiramente) brasileiros. A curiosidade era recíproca. Aprender a respeitar as diferenças e se adaptar a novas culturas foi nossa primeira lição.
Estudei nos hihongakos (escola de japonês) das associações Nipo-Brasileiras das cidades onde morei. Enquanto eu não conseguia pronunciar o hiroganá “tsu”, minha sensei (professora) não conseguia dizer as sílabas “tu”, “lá”, “fá” etc. E eu me sentia ridícula no final do ano por ter que cantar aquelas musiquinhas japonesas, que todos os brasileiros acham engraçadinhas, mas que hoje até me emocionam.
Quando a banda Hinoki-Ya se apresentou nessa noite, misturando música folclórica japonesa com ritmos de outros países (como comentou um amigo “nunca tinha visto japonês hippie”), enfim notei um Japão pós-guerra mais próximo do que o Japão tradicional que meus avôs preservaram enquanto puderam. O Japão tradicional por aqui ainda é tão sólido que o parco idioma que aprendi na infância já virou dialeto lá. Os isseis (japoneses emigrantes) mantêm a tradição de 50 anos atrás.
Mas, é engraçado observar como as culturas vão se integrando, seja na culinária (meu pai até come cheiro-verde, mas com shoyu) ou numa música israelita (com kimono na foto).
Hinoki é uma árvore japonesa, uma espécie de cipreste, comumente utilizada no bonsai. A banda Hinoki-ya me faz crer que os japoneses são como o bonsai, uma árvore que se adapta ao molde de arames e cordas, mas sempre manterá sua raiz, até mesmo por questões biológicas. Crie um japonês em outra cultura, não adianta, há reações que são tipicamente da raça e não há como retirá-las do código genético (por enquanto).
Ps: Praticamente no final do ano comerativo da Imigração Japonesa ao Brasil, resolvi falar sobre o assunto. Antes tarde do que nunca.
4 comentários:
Bem não tenho assim tanto conhecimento da cultura japonesa, digamos que o conhecimento que eu tenho e o do deturpado mundo de Hollywood, aonde o povo Japonês é sempre visto como um inimigo frio calculista e muito hábil, entretanto, conheci pessoas que são Japonesas ou mestiças, e descobrir que vai um pouco alem do que eu sei, um pouco nao, muito alem, é um povo que aprendeu a viver em hamonia com o seu mundo, perfeccionista sim, mas se é pra fazer que façamos certo, e acima de tudo um povo corajoso, que tem "peito" pra sair do outro lado do mundo e vir aportar no Brasil...
Entao parabens aos Japoneses e aos sue dependentes descendentes, que ajudaram a fazer mais um pedaço deste Brasil tao belo...
André Hebert
Só uma pequena correção... O Kasato Maru afundou em 1945, durante a II Guerra.
Obg, Aline. Vou corrigir o nome do navio, assim que eu conseguir falar com meu pai! rs
O nome do navio é Brasil Maru, e desembarcou no porto de Santos no dia 12 de dezembro de 1961. É o mesmo navio em que vieram os meus ascendentes maternos e paternos...
Sandra Mari
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